
No dia 1 de Outubro, Paulo Marques, ex-deputado municipal de Sintra, perdeu o mandato por decisão do Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra. O ex-deputado municipal de Sintra não aceitou a decisão do Tribunal Administrativo tendo recorrido para o Tribunal Central Administrativo Sul que não lhe veio a dar razão.
Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul:
P..., com os sinais nos autos, inconformado com a sentença proferida pelo Mmo. Juiz do Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra, dela vem recorrer, concluindo como segue:
1. O Recorrente desempenhava funções de assessor desde 2002;
2. Essas funções eram prestadas de forma remunerada, em regime de prestação de serviços (recibo verde);
3. Em Março de 2009, por recomendação da Câmara Municipal de Sintra, foi celebrado contrato com uma sociedade pertencente ao Recorrente;
4. Essa formalização contratual não se traduziu cm qualquer alteração das funções que o Recorrente vinha desempenhando desde 2002 nem em qualquer alteração na remuneração;
5. Constituiu uma forma de ultrapassar a dificuldade de se continuar a emitir recibos verdes;
6. A isenção e independência que o Recorrente tinha, passando recibos verdes, não é diferente da que tem, sendo o contrato celebrado com uma sociedade de que é proprietário;
7. A assembleia municipal tem competência diminuta, estando o poder executivo na câmara;
8. O Recorrente não tem quaisquer possibilidades de influenciar a vontade negocial da Câmara, no que respeita ao contrato celebrado;
9. A inelegibilidade prevista no art° 7°, n°2, alínea c) da Lei n° 1/2001 traduz-se numa restrição do direito do cidadão participar na vida política e aceder aos cargos públicos, direitos fundamentais que, nos termos do art° 18º nº 2 da CRP só podem ser restringidos na medida do necessário à salvaguarda de outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos;
10. Pelo que essa inelegibilidade só ocorre quando, no caso concreto, existe o perigo de atentar contra as garantias de isenção e imparcialidade, por o titular do cargo poder, de alguma forma, influenciar a contraparte em qualquer decisão com repercussão no contrato em execução;
11. No caso em análise não existe essa possibilidade;
12. Pelo que não existe inelegibilidade;
13. A douta sentença recorrida violou, assim, a norma do art° 7°,n°2,alínea c) da Lei n° 1/2001, a as normas constitucionais que consagram os direitos de participação na vida política (art° 18°,n°2, da CRP);
14. Impunha-se a produção de prova testemunhal sobre a matéria alegada na contestação, para comprovação dos factos alegados, de forma a determinar se houve ou não culpa (caso se perfilhe o entendimento da primeira instância sobre a inelegibilidade), pelo que violou as normas dos artigos 513° e 515° do CPC;
15. Não havendo culpa, não se podia aplicar a sanção, pelo que a sentença violou o art°10ºdaLei n°27/96;
16. Bem como os princípios da proporcionalidade, consagrados constitucionalmente;
17. Pelo que deve ser revogada, anulando-se, assim, a decisão que determinou a perda de mandato.
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O Recorrido contra-alegou, concluindo como segue:
1. Por força da aplicação conjugada dos artigos, 41°, da Lei n° 169/99, de 18 de Setembro, 7°, 2, c), da Lei Orgânica n° 1/2001, de 14 de Agosto e 8°, 1, b), da Lei n° 27/96, de 01 de Agosto, os membros dos corpos sociais e os gerentes de sociedades, bem como os proprietários de empresas que pertençam aos órgãos das autarquias locais, durante o mandato, não podem celebrar contrato com a autarquia onde exercem funções sob pena de perda de mandato.
2. A actuação do demandado, que, fazendo parte da Assembleia Municipal de Sintra, na qualidade de sócio gerente da sociedade por quotas "Xelentenota -Comunicação, Unipessoal, Lda", celebra com a Câmara Municipal de Sintra um contrato de prestação de serviços, é determinante da perda de mandato, nos termos do disposto no citado art. 8°, n° 1, al. b), da Lei n° 27/96, de 1 de Agosto.
3. Com efeito nos termos do art. 41°, da Lei n° 169/99, de 18 de Setembro (que estabelece o quadro de competências, assim como o regime jurídico de funcionamento, dos órgãos dos municípios e das freguesias) "a assembleia municipal é o órgão deliberativo do município".
4. E, nos termos da al. c), do n° 2 do art. 7° da Lei Orgânica n° 1/2001, de 14 de Agosto não são elegíveis para os órgãos das autarquias locais onde exercem funções ou jurisdição "os membros dos corpos sociais e os gerentes de sociedades, bem como os proprietários de empresas que tenham contrato com a autarquia não integralmente cumprido ou de execução continuada".
5. Também nos termos do art. 8°, n° 1, al. b), da Lei n° 27/96, de 01 de Agosto, incorrem em perda de mandato os membros dos órgãos autárquicos ou das entidades equiparadas que "após a eleição, sejam colocados em situação que os torne inelegíveis"
6. A Constituição da República Portuguesa consagra, no seu art. 50°, o "Direito de acesso a cargos públicos", estipulando no n° 3 que "no acesso a cargos electivos a lei só pode estabelecer as inelegibilidades necessárias para garantir a liberdade de escolha dos eleitores e a isenção e independência do exercício dos respectivos cargos " (sublinhado nosso).
7. Em concretização daquela norma constitucional veio o legislador ordinário através da citada Lei Orgânica n° 1/2001, de 14/08, estabelecer inelegibilidades gerais e especiais, respectivamente, nos seus arts. 6° e 7°.
8. Ora, a existência de um regime de inelegibilidade visa assegurar garantias de dignidade e genuinidade ao acto eleitoral e, simultaneamente, evitar a eleição de quem, pelas funções que exerce, se entende que não deve ou não pode representar um órgão autárquico.
9. Assim, tem sido jurisprudência uniforme do Tribunal Constitucional, quer no âmbito da actual Lei Eleitoral dos Órgãos das Autarquias Locais - LEOAL, quer da anterior (DL 701-B/76, de 29/09) que o regime de inelegibilidade previsto nos n°s. 1 e 2 do art. 7° da LEOAL, visa garantir a dignificação e a genuidade do acto eleitoral bem como garantir a isenção e a independência com que os titulares dos órgãos autárquicos devem exercer os seus cargos e, assim, gerir os negócios públicos estando em causa "(...) o exercício isento, desinteressado e imparcial dos cargos autárquicos (...)" - cfr entre outros, Acs. T. Constitucional n° 495/01, de 20/11/2001, n° 505/01, de 21/11/2001, n° 510/01, de 26/11/2001, n° 511/01, de 26/11/2001, n°, 515/01, de 26/11/2001 e n° 516/01, de 28/11/2001 in www.tribunalconstitucional.pt e no âmbito da anterior da lei, entre muitos outros, Ac. T. Constitucional 717/93, publicado in Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 26°, págs. 407 e ss.
10. Pretende-se, em suma, proteger a independência das funções e, ao mesmo tempo, manter na acção administrativa a moralidade, objectividade e serenidade que lhe deva imprimir o cariz indiscutível do interesse geral afastando-se do exercício de um determinado cargo, quem o não possa desempenhar com as necessárias liberdade e independência, comprometendo o prestígio do órgão respectivo.
11. Ora, é patente o antagonismo de situações existentes entre um membro de um órgão autárquico proprietário de uma empresa e o próprio órgão em caso de contratação sendo que tal divergência é inequívoca em contratos ainda não integralmente cumpridos ou de execução continuada como sucede com os contratos de prestação de serviços.
12. A celebração do contrato de prestação de serviços entre a sociedade "Xelentenota" representada pelo demandado seu sócio gerente e a Câmara Municipal de Sintra é necessariamente incompatível com a efectividade de funções na Assembleia Municipal de Sintra na medida em que como membro da Assembleia Municipal terá de defender os interesses da administração municipal e como interessado directo no contrato, defende interesses pessoais lutando pela maior vantagem a tirar no negócio.
13. "antagonismo evidente que importa necessário prejuízo - mesmo que não visado por qualquer das partes - para o exercício da função de vogal e que pode ser causa de injustificado benefício conseguido precisamente à custa da posição decorrente dessa função - com todas as funestas consequências para o prestígio da administração municipal, que deve manter-se íntegro" - parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria Geral da República n° 11/70, de 28/04/70, publicado no Boletim do Ministério da Justiça, n° 200, pág. 126.
14. Subsistindo a situação de inelegibilidade, faz incorrer o demandado na sanção de perda de mandato, porquanto não evita que o demandado possa continuar a influenciar ou tirar vantagem pessoal do facto de ser titular de um órgão local havendo assim, mais uma vez, o perigo de lesão dos princípios da independência e imparcialidade no desempenho das funções autárquicas.
15. É que a declaração de perda de mandato por subsistência de uma situação de inelegibilidade ainda subsistente não depende do modo concreto de exercício do respectivo mandato, antes se justifica pela necessidade de garantir a isenção e independência no exercício de cargos políticos no exercício do mandato e imagem pública dos eleitos locais.
16. Pelo que, contrariamente ao alegado pelo demandado, não se impunha a produção de prova testemunhal para eventual comprovação dos factos alegados na contestação de forma a determinar se houve ou não culpa, já que todos os factos relevantes para a decisão, se encontram comprovados documentalmente.
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Com substituição legal de vistos pelas competentes cópias entregues aos Exmos. Desembargadores Adjuntos, vem para decisão em conferência – artºs. 36º nºs. 1 e 2 CPTA e 707º nº 2 CPC, ex vi artº 140º CPTA.
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Pelo Senhor Juiz foi julgada provada a seguinte factualidade:
A. O demandado é membro da Assembleia Municipal de Sintra, órgão para o qual foi eleito no dia 9 Outubro de 2005, para o quadriénio de 2005/2009, pelo Partido Socialista (PS) - Documentos n.° 1 junto à petição inicial;
B. O demandado é, desde 5 de Junho de 2008, único sócio e gerente da sociedade por quotas denominada "Xelentenota - Comunicação, Unipessoal, Lda." - Documento n.° 2 junto à petição inicial;
C. Em 12 de Março de 2009, a sociedade "Xelentenota - Comunicação, Unipessoal, Lda.", representada pelo ora demandado, seu sócio gerente, celebrou com a Câmara Municipal de Sintra um contrato de prestação de serviços tendo por objecto "o fornecimento de serviços no âmbito do exercício da profissão liberal de Consultor da área da Gestão da Comunicação e Informação, consistindo especificamente na elaboração dos estudos, pareceres e relatórios e concretização das demais acções que venham a ser tidas como necessárias no âmbito da gestão da comunicação e informação com relevância municipal; tudo com autonomia técnica, sem sujeição à disciplina e direcção do adjudicante ou cumprimento de horário de trabalho." -Documento n.° 3 junto à petição inicial;
D. Este contrato iniciou a sua vigência no dia 12 de Março de 2009 e, "[t]endo presente que os serviços que consubstanciam o objecto do [...] contrato será prestada, directamente, aos eleitos locais que integram o Gabinete da Presidência e da Vereação, [...] cessará na data do termo do mandato em curso, sem possibilidade de renovação ou actualização do respectivo valor" - Documento n.° 3 junto à petição inicial;
E. Este contrato foi celebrado na sequência de procedimento por ajuste directo e destina-se a dar apoio técnico especializado ao nível da gestão de comunicação e informação aos Vereadores do Partido Socialista, da Câmara Municipal de Sintra. - Documento n.° 4 junto à petição inicial;
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DO DIREITO
Vem assacada a sentença de incorrer em:
1. violação primária de direito objectivo por erro de julgamento em matéria de princípio da proibição do excesso em sede de catálogo constitucional dos direitos fundamentais (artº 18º/2 CRP) …………………………………………………………….. itens 1 a 13 das conclusões;
2. violação primária de direito adjectivo por preterição de meio de prova (testemunhal) em matéria de culpa ………………………………………….…………….. itens 14 a 16 das conclusões.
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O discurso jurídico fundamentador e sentido decisório em sede de sentença é o que, de seguida, se transcreve:
“(..)
A prática, por acção ou omissão, de ilegalidades no âmbito da gestão das autarquias locais ou no da gestão de entidades equiparadas pode determinar, nos termos previstos na Lei n.° 27/96, de 1 de Agosto (regime jurídico da tutela administrativa), a perda do respectivo mandato, se tiverem sido praticadas individualmente por membros de órgãos, ou a dissolução do órgão, se forem o resultado da acção ou omissão deste (artigo 7.° da Lei n.° 27/96).
Estabelece o n.° 1 do artigo 8.° da Lei n.° 27/96 que incorrem em perda de mandato os membros dos órgãos autárquicos ou das entidades equiparadas que:
a) Sem motivo justificativo, não compareçam a 3 sessões ou 6 reuniões seguidas ou a 6 sessões ou 12 reuniões interpoladas;
b) Após a eleição, sejam colocados em situação que os torne inelegíveis ou relativamente aos quais se tornem conhecidos elementos reveladores de uma situação de inelegibilidade já existente, e ainda subsistente, mas não detectada previamente à eleição;
c) Após a eleição se inscrevam em partido diverso daquele pelo qual foram apresentados a sufrágio eleitoral;
d) Pratiquem ou sejam individualmente responsáveis pela prática dos actos previstos no artigo 9.° da mesma lei [a) Sem causa legitima de inexecução, não dê cumprimento às decisões transitadas em julgado dos tribunais; b) Obste à realização de inspecção, inquérito ou sindicância, à prestação de informações ou esclarecimentos e ainda quando recuse facultar o exame aos serviços e a consulta de documentos solicitados no âmbito do procedimento tutelar administrativo; c) Viole cuíposamente instrumentos de ordenamento do território ou de planeamento urbanístico válidos e eficazes; d) Em matéria de licenciamento urbanístico exija, de forma culposa, taxas, mais-valias, contrapartidas ou compensações não previstas na lei; e) Não elabore ou não aprove o orçamento de forma a entrar em vigor no dia 1 de Janeiro de cada ano, salvo ocorrência de facto julgado justificativo; f) Não aprecie ou não apresente a julgamento, no prazo legal, as respectivas contas, salvo ocorrência de facto julgado justificativo; g) Os limites legais de endividamento da autarquia sejam ultrapassados, salvo ocorrência de facto julgado justificativo ou regularização superveniente; h) Os limites legais dos encargos com o pessoal sejam ultrapassados, salvo ocorrência de facto não imputável ao órgão visado; i) Incorra, por acção ou omissão dolosas, em ilegalidade grave traduzida na consecução de fins alheios ao interesse público].
Incorrem, igualmente, em perda de mandato os membros dos órgãos autárquicos que, no exercício das suas funções, ou por causa delas, intervenham em procedimento administrativo, acto ou contrato de direito público ou privado relativamente ao qual se verifique impedimento legal, visando a obtenção de vantagem patrimonial para si ou para outrem (n.° 2 do artigo 8.° da Lei n.° 27/96).
Constitui ainda causa de perda de mandato, nos termos do n.° 3 do artigo 8.° da Lei n.° 27/96, a verificação, em momento posterior ao da eleição, de prática, por acção ou omissão, em mandato imediatamente anterior, dos factos referidos na alínea d) do n.° 1 e no n.° 2 do mesmo artigo.
Dispõe o n.° 1 do artigo 10.° da mesma Lei que não haverá lugar à perda de mandato ou à dissolução de órgão autárquico ou de entidade equiparada quando, nos termos gerais de direito, e sem prejuízo dos deveres a que os órgãos públicos e seus membros se encontram obrigados, se verifiquem causas que justifiquem o facto ou que excluam a culpa dos agentes.
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No caso em apreço, a acção para perda de mandato foi interposta com fundamento na alínea b) do n.° 1 do artigo 8.° da Lei n.° 27/96, na parte em que estabelece que incorrem em perda de mandato os membros dos órgãos autárquicos que, após a eleição, sejam colocados em situação que os torne inelegíveis.
Este fundamento de perda de mandato não se prende, ao contrário de quase todos os outros que a lei taxativamente elenca, com o modo como o membro do órgão autárquico exerce o seu mandato.
O que o legislador estabelece nesta norma é que, independentemente do modo como o mandato é exercido, se o membro do órgão autárquico está numa situação que, em caso de eleição, o torna inelegível, tal situação, ocorrida após a eleição, determina a perda do seu mandato.
Dito de outro modo: Se o cidadão, naquela situação, não podia ser eleito para determinado órgão também não poderá, ocorrendo a situação depois da eleição, manter o mandato para o qual foi eleito.
E assim sendo, nestes casos não tem aplicação o disposto no n.° 1 do artigo 10.° da Lei n.° 27/96, pois a situação de inelegibilidade após a eleição tem de ser apreciada nos mesmos termos em que é apreciada a inelegibilidade antes da eleição, ou seja independentemente de "causas que justifiquem o facto ou que excluam a culpa dos agentes".
Neste sentido pronunciou-se o Tribunal Constitucional no Acórdão n.° 382/2001, disponível para consulta em www.tribunalconstituconal.pt numa situação em que estava em causa a perda de mandato por força do artigo 8.°, n°. 1, alínea b) da Lei n.° 27/96, de 1 de Agosto, por não poderem ser eleitos para os órgãos do poder local os funcionários dos órgãos representativos das freguesias ou dos municípios (artigo 4°, n°. 1, alínea c) do Decreto-Lei n°. 701-B/76, de 29 de Setembro, na redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n° 757/76, de 21 de Outubro).
Pode ler-se nesse acórdão o seguinte:
"A Lei n.° 27/96, de 1 de Agosto, estipula na alínea b) do n.° 1 do artigo 8° que incorrem na perda de mandato os membros dos órgãos autárquicos que após a eleição sejam colocados em situação que os torne inelegíveis ou relativamente aos quais se tornem conhecidos elementos reveladores de situação de inelegibilidade existente e ainda subsistente, mas não detectada previamente à eleição.
Trata-se de solução legal há muito enraizada no nosso ordenamento jurídico, já que no Código Administrativo aprovado pelo Decreto-Lei n.° 31 095, de 31 de Dezembro de 1940, a situação de inelegibilidade ocorrida após a eleição para cargos electivos figurava como fundamento da perda de mandato (cfr., v.g., artigos 20.° e 41.°).
A inelegibilidade como fundamento da perda de mandato de quem exerce funções de membro de órgão autárquico justifica-se pela necessidade de garantir a isenção e a independência no exercício do cargo autárquico. Pretende-se assegurar que quem foi eleito membro de órgão autárquico garanta no exercício do cargo essas isenção e independência, competindo ao legislador ordinário criar, por um lado, condições para que os cargos autárquicos sejam exercidos com isenção e independência e, por outro, condições para que os titulares dos cargos autárquicos se apresentem aos olhos dos cidadãos como pessoas acima de qualquer suspeita.
Não se vê qualquer razão para distinguir entre as situações de inelegibilidade ab initio em que a pessoa não pode ser eleita para salvaguarda da transparência, isenção e imparcialidade no exercício de cargo público nos órgãos do poder local e a inelegibilidade após a eleição de pessoa que, pela qualidade de funcionário dos órgãos representativos das freguesias e dos municípios, não garante essas mesmas características no desempenho das suas funções, independentemente de um juízo de culpa sobre a sua actuação concreta.
Se o funcionário dos órgãos representativos das freguesias e dos municípios não pode ser eleito para os órgãos de poder local - considerando-se inelegível - também não pode continuar a exercer os cargos autárquicos para que foi eleito o funcionário que, após a eleição, reúne/confunde na sua pessoa as qualidades de funcionário e membro de um órgão local (in casu, membro da Assembleia Municipal de Braga), por se encontrar em situação de inelegibilidade. Verificada a inelegibilidade após a eleição, e considerando os valores de isenção e transparência que aquela visa tutelar, independentemente do modo como o autarca exerce, em concreto, os seus poderes, a perda de mandato è uma solução adequada e mesmo irrecusável, em ordem a preservar esses valores e a confiança que o exercício dos cargos autárquicos deve merecer dos cidadãos."
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O que cabe apreciar é, pois, se o demandado se colocou, após a eleição para a Assembleia Municipal de Sintra, em situação que o torna inelegível para esse órgão autárquico.
A lei que regula a eleição dos titulares dos órgãos das autarquias locais é a Lei Orgânica n.° 1/2001, de 14 de Agosto (LEOAL - Lei Eleitoral dos Órgãos das Autarquias Locais).
Nos termos da alínea c) do n.° 2 do artigo 7.° desta Lei, no qual se prevêem inelegibilidades especiais, não são elegíveis para os órgãos das autarquias locais os membros dos corpos sociais e os gerentes de sociedades, bem como os proprietários de empresas que tenham contrato com a autarquia não integralmente cumprido ou de execução continuada.
Como pode ler-se no Acórdão n.° 430/2005, do Tribunal Constitucional, disponível para consulta em www.tribunalconstitucional.pt :
"Quanto à inelegibilidade em causa, quer face à norma actualmente vigente (artigo 7.°, n.° 2, alínea c), da LEOAL), quer à correspondente norma da anterior lei eleitoral para as autarquias locais (artigo 4.°, n.° 1, alínea f), do Decreto-Lei n.° 701-B/76, de 29 de Setembro), o Tribunal Constitucional tem sustentado que a sua justificação radica na preocupação de assegurar o exercício isento, desinteressado e imparcial dos cargos autárquicos e que a sua extensão abarca os candidatos que, por virtude das eleições a que pretendam concorrer, possam vir a fazer parte dos órgãos da autarquia com a qual tenham contrato pendente: por isso, "se o contrato tiver sido celebrado com um concelho, o candidato só é atingido pela inelegibilidade em causa se pretender eleitoralmente concorrer á câmara municipal ou à assembleia municipal de tal município ou ainda, e como cabeça de lista, à assembleia de qualquer uma das freguesias do mesmo concelho, já que neste último caso será automaticamente presidente da junta de freguesia (...) e terá, em consequência, assento, por direito próprio, na assembleia municipal do respectivo concelho" (Acórdão n.° 253/85, doutrina reiterada nos Acórdãos n.°s 720/93, 505/2001 e 516/2001). (Sublinhados nossos).
Sobre a inelegibilidade prevista na alínea c) do n.° 2 do artigo 7.° da LEOAL esclarece o Acórdão n.° 510/01, do Tribunal Constitucional, também disponível para consulta em www.tribunalconstitucional.pt , que para que esta ocorra "é necessário que concorram duas circunstâncias: a primeira circunstância é de ordem subjectiva, pois tem a ver com a qualidade do candidato - este tem de ser membro dos órgãos sociais ou gerente de uma sociedade, ou, então, proprietário de uma empresa; a segunda circunstância é de ordem objectiva: a sociedade ou empresa a que o candidato se encontra ligado há-de manter com a autarquia contrato de execução continuada ou, então, contrato ainda não integralmente cumprido."
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Face a esta jurisprudência constitucional podemos afirmar que estando em causa a eleição para o órgão deliberativo - a Assembleia Municipal - de determinado Município, se verifica a inelegibilidade prevista na alínea c) do n.° 2 do artigo 7.° da LEOAL se o candidato a membro da assembleia municipal é membro dos corpos sociais ou gerente de uma sociedade ou, ainda, proprietário de uma empresa e essa sociedade ou empresa mantém contrato com esse Município não integralmente cumprido ou de execução continuada.
Não podemos, pois, aderir à jurisprudência do Tribunal Central Administrativo Sul, invocada pelo demandado, na qual se considerou que "A inelegibilidade prevista na al. c) do n° 2 do art 7° da Lei n° 1/2001, de 14/8, só ocorre quando, no caso concreto, existe o perigo de atentar contra as garantias de isenção e imparcialidade por o titular do cargo autárquico poder, de alguma forma, determinar ou influenciar qualquer decisão da contraparte contratante com repercussão no contrato em execução." E que "Resultando da análise das competências da Assembleia Municipal, enumeradas taxativamente no art. 53° da Lei n° 169/99, de 18/9, que este órgão não tem possibilidade de tomar deliberações susceptíveis de influenciarem as relações contratuais em questão, deve-se concluir que não se verifica a referida inelegibilidade."
Com efeito, como tem afirmado a jurisprudência do Tribunal Constitucional a inelegibilidade prevista na alínea c) do nº 2 do artigo 7º da Lei Orgânica nº 1/2001 visa "criar, por um lado, condições para que os cargos autárquicos sejam exercidos com isenção e independência e, por outro, condições para que os titulares dos cargos autárquicos se apresentem aos olhos dos cidadãos como pessoas acima de qualquer suspeita", pelo que não exige que se demonstre que o titular do cargo autárquico pode, no caso concreto, de alguma forma, determinar ou influenciar qualquer decisão da contraparte contratante com repercussão no contrato em execução.
Acresce que o entendimento adoptado pelo Tribunal Central Administrativo Sul levaria a considerar, atentas as competências atribuídas por lei à assembleia municipal (órgão deliberativo do Município) que, em regra, os candidatos a esse órgão autárquico membros dos corpos sociais ou gerentes de sociedades ou, ainda, proprietários de empresas que mantêm contrato com o Município não integralmente cumprido ou de execução continuada, não estariam abrangidos pela inelegibilidade prevista na alínea c) do n.° 2 do artigo 7.° da Lei Orgânica n.° 1/2001, entendimento este que contraria a jurisprudência reiterada do Supremo Tribunal Administrativo e do Tribunal Constitucional que tem considerado estarem abrangidos pela inelegibilidade os candidatos "à câmara municipal ou à assembleia municipal de tal município ou ainda, e como cabeça de lista, à assembleia de qualquer uma das freguesias do mesmo concelho, já que neste último caso será automaticamente presidente da junta de freguesia (...) e terá, em consequência, assento, por direito próprio, na assembleia municipal do respectivo concelho".
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Retornando ao caso em apreço, estando em causa a eleição para o órgão deliberativo do Município de Sintra, a Assembleia Municipal de Sintra, não é ilegível, atento o disposto na alínea c) do n.° 2 do artigo 7.° da LEOAL, o candidato que seja membro dos corpos sociais ou gerente de uma sociedade out ainda, proprietário de uma empresa que mantenha contrato com o Município de Sintra, não integralmente cumprido ou de execução continuada.
Ora, face à matéria de facto provada nos autos, é manifesto que o demandado se encontra numa situação que o torna inelegível para a Assembleia Municipal de Sintra - é sócio e gerente de uma sociedade, a "Xelentenota - Comunicação, Unipessoal, Lda.", que mantém contrato de prestação de serviços com o Município de Sintra, o qual não se encontra integralmente cumprido (alíneas B) a D) dos factos provados).
E tal situação de inelegibilidade faz incorrer o demandado na sanção de perda de mandato.
O demandado pede que o Tribunal declare que está isento de custas, por força do disposto na alínea d) do n,° 1 do artigo 4.° do Regulamento das Custas Processuais.
Estabelece a alínea d) do n.° 1 do artigo 4.° do Regulamento das Custas Processuais que estão isentos de custas os eleitos locais qualquer que seja a forma do processo, quando pessoalmente demandados em virtude do exercício das suas funções.
Nestes termos, o demandado só estaria isento de custas se tivesse sido demandado na presente acção em virtude do exercício das suas funções como membro da Assembleia Municipal de Sintra, o que não se verifica, pelo que terá que ser condenado em custas.
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decisão
Nos termos e com os fundamentos expostos, considerando o disposto na alínea b) do n.° 1 do artigo 8.° da Lei n.° 27/96, de 1 de Agosto e na alínea c) do n.° 2 do artigo 7.° da Lei Orgânica n.° 1/2001, de 14 de Agosto, julga-se a presente acção provada e, em consequência, declara-se a perda do mandato de P..., como membro da Assembleia Municipal de Sintra, para o qual foi eleito em 9 de Outubro de 2005. (..)”
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Diga-se, desde já, que a sentença é para confirmar in totum.
Efectivamente, os factos demonstram que:
1. em 12.Março.09 foi adjudicado pela Câmara Municipal de Sintra por ajuste directo um contrato de prestação de serviços com a sociedade unipessoal por quotas do Recorrente, contrato em execução até à “(..) data do termo do mandato em curso (..)”;
2. sendo o Recorrente, simultaneamente, sócio e gerente da sociedade adjudicatária e membro da Assembleia Municipal de Sintra para os 4 anos do mandato de 2005/2009;
3. o Recorrente é sócio e gerente da dita sociedade adjudicatária.
Nos termos do Código das Sociedades Comerciais, “a sociedade unipessoal por quotas é constituída por um sócio único, pessoa singular ou colectiva, que é o titular da totalidade do capital social”, artº 270º - A nº 1 CSC, sendo que “o sócio único exerce as competências das assembleias gerais, podendo, designadamente, nomear gerentes”, artº 270º-E, nº 1 CSC; e, por último, “às sociedade unipessoais por quotas aplicam-se as normas que regulam as sociedades por quotas, salvo as que pressupõem a pluralidade de sócios.”, artº 270º-G CSC.
De modo que é aplicável ao caso dos autos o disposto no artº 260º nº 1 CSC, “os actos praticados pelo gerente em nome da sociedade e dentro dos poderes que a lei lhe confere, vinculam-na perante terceiros”.
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O disposto no artº 7º nº 2 c) Lei Orgânica nº 1/2001 de 14.08 é muito claro na discriminação de circunstâncias que determinam a “(..) impossibilidade de candidatura às eleições locais e a própria perda de mandato, se ocorrerem após a eleição, e constituem um obstáculo dirimente da regular eleição do atingido [no sentido] de assegurar garantias de dignidade e genuidade do acto eleitoral e, simultaneamente de evitar a eleição de quem, pelas funções que exerce (ou por outras razões que retirem a imparcialidade), se entende que não deve representar um órgão autárquico (..)” (1)
Nesse artº 7º nº 2 c) da Lei 1/01 prescreve-se que não são elegíveis para os órgãos das autarquias locais os membros dos corpos sociais e os gerentes de sociedades, bem como os proprietários de empresas que tenham contrato com a autarquia não integralmente cumprido ou de execução continuada, sendo que o objecto do referido contrato administrativo celebrado por ajuste directo entre a autarquia e o membro da assembleia municipal/gerente e sócio da sociedade unipessoal por quotas, a quem foi adjudicado, é de “dar apoio técnico especializado ao nível da gestão de comunicação e informação aos Vereadores do Partido Socialista, da Câmara Municipal de Sintra”, conforme probatório.
Não tem, pois, qualquer fundamento jurídico esgrimir com a violação do artº 18º nº 2 CRP (proibição do excesso) porque é a própria Lei Orgânica nº 1/2001 de 14.08 que restringe o direito político de um membro da assembleia municipal celebrar contratos – por si ou pela empresa de que seja sócio ou gerente – com a autarquia de que é parte desse órgão próprio, em aplicação, óbvia, do princípio constitucional da imparcialidade consagrado no artº 266º nº 2 CRP, não admitindo a celebração de negócios “em casa própria”, isto é, na autarquia em que o sócio ou gerente societário exerce um cargo político, para obstar ao que em direito se configura pela confusão de posições jurídicas.
Como também não tem fundamento jurídico esgrimir com a averiguação de causas de exculpação pelas razões da fundamentação de direito constantes do Acórdão do Tribunal Constitucional nº 382/2001, acima transcrito, pelo que é impertinente a formulação de prova testemunhal sobre matéria que não assume relevância jurídica no caso concreto.
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Improcedem, pelo que vem de ser dito, todas as questões trazidas a recurso.
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Em face do exposto conclui-se que a explanação doutrinária apresentada supra, que a presente formação deste TCA também sufraga sem qualquer declaração de voto contrária, não permite outro sentido de decisão que não seja o sentenciado e que se confirma inteiramente – cfr. artº 713º nº 5, 1ª parte, CPC, na redacção introduzida pelo DL 303/07, 04.08, ex vi artº 140º CPTA
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Termos em que acordam, em conferência, os Juízes Desembargadores da Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul em negar provimento ao recurso e confirmar a sentença proferida.
Custas a cargo do Recorrente.
Lisboa, 01.OUT.2009,
(Cristina dos Santos) ............................................................................................................
(António Vasconcelos) ........................................................................................................
(Carlos Araújo) .....................................................................................................................
1 - Maria José Castanheira Neves, Governo e administração local, Coimbra Editora/2004, págs. 205/206.